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Centro de Análise e Monitoramento de Políticas Públicas

Conhecimento livre, políticas públicas e Gilberto Gil: “Sou um Ministro hacker”

Em 28 de julho de 2025 por GT de Políticas Digitais.

Gabriel Boscardim de Moraes e Miguel Said Vieira.

A trajetória de Gilberto Gil, um dos grandes expoentes de nossa música popular, está entrelaçada à cultura brasileira desta última metade de século. Neste texto, partiremos de algumas intersecções entre arte, tecnologia e ativismo em sua carreira, para refletir sobre a importância do conhecimento e cultura livres no âmbito de políticas públicas.

Em sua música “Cérebro Eletrônico”, de 1969, o cantor já demonstrava interesse pelo tema da computação em seus versos “O cérebro eletrônico faz tudo, faz quase tudo, mas ele é mudo”. Depois, em 1997, lançou sua canção “Pela Internet”, na primeira transmissão online realizada por um artista brasileiro, onde eternizou seu entusiasmo pela rede mundial de computadores nos versos “Eu quero entrar na rede, promover um debate, juntar via Internet, um grupo de tietes de Connecticut”. 

Mais a frente, em 2005, na condição de Ministro da Cultura, o compositor Gilberto Gil declarou: “Sou ministro, sou músico, mas sou, sobretudo, um ‘hacker’ em espírito e vontade. Todos aqui sabem que sou um defensor, um praticante, […] um entusiasta sem dúvida do software livre, dos instrumentos de realização de redes virtuais e remotas dos programas de inclusão digital”.

Na fala de Gil, o termo “hacker” não é utilizado de forma pejorativa, para se referir a quem invade dispositivos de terceiros com intuito criminoso. Pelo contrário, “hacker” aparece ali com sentido mais próximo ao original, ligado à experimentação, ao compartilhamento; e indiretamente, ao ativismo e aos movimentos sociais. Ele se refere aos militantes que utilizam as tecnologias da informação e comunicação de forma colaborativa para compartilhar conhecimentos e construir alternativas no campo da contracultura.

Não à toa, Gil faz referência direta ao software livre em sua fala. O software livre, nada mais é do que sistemas cujo código é aberto, disponibilizados de forma a garantir 4 liberdades fundamentais, definidas por Richard Stallman: 1) A liberdade de executar o programa como você desejar, para qualquer propósito; 2) A liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo às suas necessidades; 3) A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar outros e 4) A liberdade de distribuir cópias de suas versões modificadas a outros, de modo a permitir a comunidade se beneficiar do que foi construído por você. (FREE SOFTWARE FOUNDATION, 2023)

Baseado nesse espírito de divisão do conhecimento inscrito na cultura hacker, Gil também lançou a música “Oslodum”, disponibilizada em licença aberta Creative Commons, permitindo que qualquer um possa samplear, remixar ou transformar a canção, de forma gratuita, desde que dado crédito ao seu criador original.

Com esse exemplo, podemos ver como a cultura hacker influenciou de forma mais ampla outros movimentos de conhecimento aberto, que enxergam que a disponibilização de informações em licença aberta, como produções artísticas, científicas, e governamentais, pode ampliar a colaboratividade e promover um maior debate social sobre temas relevantes.

Entre esses movimentos, podemos citar a Coalizão Direitos na Rede e o Wikimedia Brasil, que em fevereiro de 2025 iniciaram a campanha “Conhecimento é Direito”. Eles reivindicam que a Lei de Direitos Autorais brasileira traz obstáculos importantes ao acesso ao conhecimento, e propõem uma discussão visando um maior equilíbrio entre os direitos autorais e os interesses públicos de incentivo à criatividade, inovação e fortalecimento da cultura. (WIKIMEDIA BRASIL; COALIZÃO DIREITOS NA REDE, 2025)

Ainda, os movimentos propõem que o serviço público adote e impulsione a cultura livre – em outras palavras, a prática de liberar obras culturais para que possam ser usadas, circuladas e (em alguns casos) modificadas livremente. Segundo seu guia lançado para gestores públicos e legisladores, a cultura livre na gestão pública não só pode trazer maior eficiência e transparência, facilitando o acesso aos bens culturais da nação, como também garante processos mais democráticos e responsáveis. (WIKIMEDIA BRASIL; COALIZÃO DIREITOS NA REDE, 2025)

Dialogamos sobre esses temas com Pedro Lana, membro da Diretoria do Creative Commons Brasil e do Instituto Observatório do Direito Autoral, e participante da campanha “Conhecimento é Direito”:

De modo geral, quais são as barreiras atualmente existentes para a cultura de conhecimento aberto no Brasil?
O Brasil tem uma legislação de direitos autorais que é percebida majoritariamente (tanto pelos estudiosos no país quanto no estrangeiro) como relativamente ultrapassada para lidar com a sociedade informacional e o ambiente digital. Isso significa que ela ainda é pensada para o mundo analógico e para um espaço de produção cultural concentrado em poucas entidades, algo especialmente prejudicial quando falamos de limitações e exceções de direitos autorais, que é um problema notável na América Latina. Essa falta de atualizações equilibradas afeta, e muito, a possibilidade de usos de interesse público dessas obras (para fins educacionais e digitalização de registros culturais históricos, por exemplo) e em criações derivadas, como o reaproveitamento criativo de obras que caracteriza a economia criativa da Internet. Isso também prejudica desproporcionalmente os pequenos autores, que raramente encontram grupos de representação de interesse fortes que atuem em seu favor nas regulamentações infralegais ou decisões judiciais que suprem as lacunas da lei. Por outro lado, os tribunais vêm criando uma jurisprudência ampliativa das limitações e exceções, justamente para tentar mitigar a rigidez e inadequação da legislação vigentes, embora já tenham também adotado entendimentos contraprodutivos, como a redução do escopo do direito de panorama, que permite a reprodução de obras em espaços públicos, com uma fundamentação bastante questionável nos tratados internacionais sobre direitos de autor. 

O que os movimentos entendem que precisa ser alterado na legislação vigente?

Seria benéfico que a legislação adotasse uma linguagem mais aberta e ampliasse o rol de limitações e exceções, além de resguardar o domínio público e impedir qualquer tipo de restrição dos usos livres por meio de instrumentos contratuais ou mecanismos tecnológicos, visto que costumeiramente tenta-se reduzir esses espaços legalmente estabelecidos com dispositivos privados de forma profundamente questionável. O texto original proposto para o PL 2370/2019, que pretendia uma reforma da Lei de Direitos Autorais, avançava de forma muito positiva diversos desses aspectos: (i) ampliava o rol de obras que não poderiam gozar de proteção de direitos autorais, incluindo regras de segurança de manuais e bulas de medicamento; (ii) permitia a declaração pelo autor de que a obra estava em domínio público; (iii) permitia o uso de  permissão do uso de obras órfãs (quando é muito difícil ou impossível encontrar o titular); e (iv) adicionava diversas hipóteses de limitações e exceções, inclusive para fins de saúde pública e preservação cultural, além de incluir também um dispositivo aberto, capaz de se adaptar às mudanças tecnológicas e da sociedade. A retomada dessas mudanças seria fundamental, ainda que mantidas ao lado das novas focadas exclusivamente em remuneração dos autores, que substituíram o texto original. Para além de mudanças na legislação, são também proveitosas algumas escolhas de políticas públicas mais permissivas e com perspectivas menos proprietaristas, como a liberação sob licenças livres de acervos de órgãos públicos ou de produções financiados com recursos públicos.

Quais são os ganhos sociais que se espera alcançar com essas alterações? Como isso pode ser positivo para o Estado e para a sociedade civil?
Já está bastante consolidada a perspectiva de que legislações muito rígidas de propriedade intelectual afetam negativamente o espaço de produção cultural e de inovação do país, e que esses objetivos são maximizados ao se atingir um nível adequado de flexibilidade (mas não promover a flexibilidade como um fim em si mesmo). Porém, para além desse aspecto mais ligado à eficiência dos sistemas, deve ser sublinhado principalmente o ganho para fins educacionais, de pesquisa e de preservação e acesso à cultura. Um sistema balanceado evita que professores tenham medo de utilizar conteúdos úteis para seus alunos, especialmente quando o próprio criador dos conteúdos gostaria que seus materiais fossem mais utilizados para essas finalidades; que médicos possam ter acesso facilitado a informações que podem salvar a vida de pacientes, tanto de pesquisas de ponta da área de saúde quanto de instruções sobre usos de medicamentos; que museus possam digitalizar com segurança seus acervos para que, em casos de catástrofes como o incêndio do Museu Nacional, as perdas não sejam tão absolutas e profundas.

Para além da cultura livre, a própria adoção de softwares livres pode ser positiva para o Estado. Isso porque esses sistemas podem ser adotados onerando menos os cofres públicos (embora ainda possam envolver outros custos, como o de treinamento, a aquisição do software é em geral gratuita) e podem ser alterados pela administração pública de modo a se adequar às circunstâncias específicas de cada órgão, algo garantido por suas licenças. Ademais, a abertura dos códigos usados pelo Governo poderia garantir maior transparência dos processos automatizados, possibilitando maior controle social (SILVEIRA, 2017).

Por fim, o uso de códigos abertos no governo garante maior soberania digital e um menor nível de aprisionamento tecnológico. Isto é, o governo passa a ter maior controle sobre as infraestruturas digitais necessárias para o seu trabalho e fica cada vez menos dependente de tecnologias vendidas por empresas privadas, que podem levar à necessidade de maiores gastos e dificuldades com interoperabilidade (SILVEIRA, 2022).

Em suma, a trajetória de Gilberto Gil demonstra como a cultura do conhecimento aberto pode ser positiva para o desenvolvimento de políticas públicas. Sua defesa do software livre e da cultura hacker transcendeu a música e encontrou eco em movimentos sociais que buscam democratizar o acesso à informação e garantir maior transparência e participação cidadã, princípios alinhados com o compromisso original firmado na Constituição Federal de 1988.  

O debate sobre direitos autorais, cultura livre e uso de tecnologias abertas no setor público é essencial para equilibrar os interesses individuais e coletivos. Movimentos como a Coalizão Direitos na Rede e o Wikimedia Brasil mostram que ainda há desafios a serem enfrentados, especialmente em relação à legislação vigente de direitos autorais. No entanto, a adoção de princípios de compartilhamento e colaboração pode fortalecer a inovação, a criatividade e a soberania digital, beneficiando tanto o Estado quanto os coletivos civis.  

Assim, ao reafirmar a importância da cultura hacker e do conhecimento aberto, reforçamos a necessidade de políticas públicas que garantam um ambiente mais acessível, participativo e transparente, impulsionando o desenvolvimento humano como um todo.

Você pode saber mais sobre a campanha Conhecimento é Direito pelo link.

FREE SOFTWARE FOUNDATION. O que é o software livre? – Projeto GNU – Free Software Foundation. Disponível em: <https://www.gnu.org/philosophy/free-sw.html>. Acesso em: 2 abr. 2025. 

SILVEIRA, S. A. da. Inteligência artificial & neoliberalismo. Em: SANTAELLA, L. (Ed.). Simbioses do Humano & Tecnologias. Impasses, dilemas, desafios. 1. ed. São Paulo: EDUSP, 2022. p. 63–76. 

SILVEIRA, S. A. GOVERNO DOS ALGORITMOS. Revista de Políticas Públicas, v. 21, n. 1, p. 267–282, 26 jul. 2017. 

WIKIMEDIA BRASIL; COALIZÃO DIREITOS NA REDE. Conhecimento é Direito. Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6c/E-book_da_campanha_%22Conhecimento_%C3%A9_Direito%22.pdf>. Acesso em: 2 abr. 2025.