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Centro de Análise e Monitoramento de Políticas Públicas

Maternidade, cuidado e ausência paterna: entre o invisível e o insustentável

Em 28 de julho de 2025 por GT de Interseccionalidades: gênero, raça e classe.

Isabela Tabarelli Cabral, Isabella Tardelli Maio e Michele Ferreira

A ausência do nome do genitor na certidão de nascimento revela um dos aspectos do abandono parental, mas para além disso, ajuda a reforçar os papéis de gênero na sociedade contemporânea. A divisão sexual do trabalho contribui com os estigmas pré-estabelecidos, atribuindo à mulher funções que acarretam uma significativa sobrecarga na vida cotidiana. Diante disso, é inevitável não relacionar a questão de gênero com maternidade e, consequentemente, com políticas de cuidado, ou mais precisamente, a ausência delas. 

Desde 2019, cerca de 800 mil brasileiros foram registrados sem o nome do genitor (Souza, 2024). Na prática, isso significa quase um milhão de certidões de nascimento em que se consta apenas o nome da mãe, mas o que isso nos diz? Adrienne Rich, importante teórica estadunidense, aponta que não existe um termo para os homens que não são pais, mas quando olhamos para a realidade vivida pelas mulheres, o cenário é diferente. “Estéril” [barren] ou “sem filhos” [childless] são os termos utilizados na língua inglesa, que apontam para a inequidade desses papéis e as grandes expectativas depositadas sobre as mulheres no sentido de se tornarem mães (Rich, 1995). 

Na Câmara dos Deputados, atualmente, tramita um PL que determina o prazo de cinco dias para que os cartórios de registro civil notifiquem a Justiça sobre nascimentos sem dados do pai biológico (Câmara dos Deputados, 2025). No entanto, para além desse esforço institucional, é preciso refletir sobre como a ausência da identificação paterna evidencia diferentes contextos sociais, nos quais se rompem os modelos tradicionais tanto de paternidade quanto de maternidade. Como aponta Thurler (2006), o não reconhecimento de crianças por seus pais expressa a persistência de práticas patriarcais historicamente naturalizadas, nas quais a arbitrariedade masculina molda as relações familiares. Superar tais padrões é fundamental não apenas para garantir o direito à filiação paterna, mas também para promover a igualdade de responsabilidades entre homens e mulheres, reforçando valores como solidariedade, autoestima, empoderamento de grupos vulneráveis e justiça redistributiva, pilares de uma cidadania mais inclusiva.

Nesse sentido, Rich (1995) faz a distinção entre dois significados para “maternidade”: o primeiro diz respeito à experiência vivida, marcada por vínculos complexos e emocionais; já o segundo, enquanto instituição social e política, define normas rígidas sobre o que é ser mãe, e impõe a obrigação do cuidado quase exclusivo às mulheres, além de legitimar a subordinação feminina ao colocá-las em um papel de abnegação, sacrifício e isolamento.

É interessante analisar essa dicotomia, porque enquanto uma definição tem potencial libertador, a outra, ao naturalizar a ideia de que cuidar dos filhos é uma qualidade inata da mulher, acaba por restringir a autonomia feminina, excluindo os pais da corresponsabilidade e perpetuando desigualdades de gênero.

A ausência paterna nos registros de nascimento, portanto, não deve ser entendida como um fenômeno isolado, sendo, na verdade, um dos sintomas da divisão sexual do trabalho. À medida que as funções do cuidado são atribuídas às mulheres, restringindo-as à esfera reprodutiva do lar, aos homens é designado o espaço público, posto como produtivo e socialmente valorizado (Hirata; Kergoat, 2007; Federici, 2023). O trabalho reprodutivo – que envolve desde o aspecto biológico, como a gestação e a amamentação, até as atribuições sociais, tais como a criação dos filhos e adultos dependentes (deficientes ou idosos) e manutenção do lar – é, em contrapartida, desvalorizado, assimilado como uma aporte feminino obrigatório, e não como uma atividade econômica e social (Federici, 2019).

A desconsideração dessa carga invisível (na verdade, invisibilizada) perpetua a ideia de que a ausência paterna é uma lacuna que a mulher deve preencher sozinha. Essa lógica não apenas sobrecarrega as mães, como também isenta os homens de sua responsabilidade como genitores, naturalizando a omissão e reforçando os papéis socialmente pré-definidos. O que pode ser identificado como uma resposta à lacuna deixada pela ausência masculina na esfera reprodutiva, é a transferência da responsabilidade do cuidado de uma mulher para outra; a existência de uma “rede” de mulheres, como discutiu Adrienne Rich (2021), que se apoiam e compartilham as responsabilidades do cuidado, seja entre mães, avós ou amigas. 

A discussão sobre os aspectos da maternidade e paternidade podem ser associados aos conceitos de ética do cuidado e ética da justiça elaborados por Gilligan (1993). Assim, enquanto o aspecto da justiça se atrela à esfera masculina e pública, enfatizando a imparcialidade, os direitos e regras formais, a vertente do cuidado diz respeito à empatia, cuidado e abnegação e, portanto, volta-se às mulheres (Gilligan, 1993). Associações como essa, que validam as construções de performance de gênero, são problemáticas, pois romantizam o sacrifício e sobrecarga maternos, como discutiu Zanello (2016), bem como estigmatizam mulheres que se afastam desse modelo (Rich, 2021; Badinter, 1985).

No que diz respeito à paternidade, o efeito é oposto, traduzido em uma expectativa social mínima sobre os homens (Federici, 2019), que são frequentemente saudados e elogiados ao performarem o trabalho reprodutivo, mesmo que brevemente (Zanello, 2016). As mulheres, em contrapartida, devem sujeitar-se à função de cuidadoras (Badinter, 1985), suprindo a responsabilidade moral e afetiva causada pela ausência paterna.

Dessa forma, o que o absentismo paterno nos registros civis exprime não é apenas um dado estatístico preocupante, mas um reflexo sobre a desresponsabilização masculina no trabalho reprodutivo e a manutenção das bases da desigualdade de gênero. Essa ausência sobrecarrega mães, mas também outras mulheres que, por laços familiares ou comunitários, assumem o cuidado que deveria ser compartilhado (Rich, 2021). Para as crianças, significa a privação de uma referência essencial (Zanello; Porto, 2016). Para os homens, a permanência confortável em um lugar de isenção afetiva e material. 

Com o abandono por parte dos genitores, na maioria esmagadora das vezes, a responsabilidade e obrigação do cuidado dos filhos recai sobre as mulheres – muitas vezes, as mães – mas não só, sendo que avós, tias, primas, irmãs, e toda uma gama de mulheres podem acabar sendo acometidas com mais esse dever, que por muitos é considerado como uma escolha natural, mas longe disso, trata-se de uma questão político-social, que destina às mulheres exclusivamente a criação dos filhos, e não atribui aos homens a mesma função.

Diante desse cenário, faz-se necessário reconhecer a importância de valorizar a função do cuidar como trabalho essencial e, mais do que isso, desenhar políticas públicas que possam abranger e beneficiar as pessoas que são as maiores responsáveis por exercerem esse dever. Pensar políticas de cuidado que dêem visibilidade a essas mulheres e lhes assegurem direitos (trabalhistas, previdenciários, etc) é o mínimo que se pode exigir de um país que é composto majoritariamente por mulheres. É importante mencionar também que a maioria das mulheres do país é negra (G1, 2024) e, diante desse cenário, rememorar o passado escravista e colonial do Brasil – que possui seus resquícios nos dias de hoje – se faz cada vez mais urgente, tendo em vista que elas são as mais sobrecarregadas com os serviços relacionados a política do cuidado. Um exemplo disso são os serviços domésticos, em sua maioria precarizados, que muitas vezes acabam permitindo que mulheres com maior poder aquisitivo exerçam uma dupla jornada que não necessariamente envolve atividades de cuidado.

Conforme preconiza Sueli Carneiro

(…) Constata-se que a conjugação do racismo com o sexismo produz sobre as mulheres negras uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida, que se manifestam em sequelas emocionais com danos à saúde mental e rebaixamento da autoestima: em uma expectativa  de vida menor, em cinco anos, em relação à das mulheres brancas; em um menor índice de casamentos; e sobretudo no confinamento nas ocupações de menor prestígio e remuneração (Carneiro, 2011, pp. 127-128).

Perante o exposto, resta evidente a necessidade de repensarmos a relação das mulheres como cuidadoras, e não só, mas também como principais responsáveis pela casa e pelos filhos. Além disso, é importante também reavaliarmos os papéis de gêneros impostos socialmente, e as atribuições que a eles são imbuídas, e que por vezes acabam sobrecarregando as pessoas as quais são direcionadas, restringindo-as a exercer uma determinada atividade que acaba lhes tolhendo e privando de exercer tantas outras, que são diretamente impactadas pela falta de uma divisão mais equânime de atividades relacionadas ao cuidado.

 

Referências

Badinter, Elisabeth. O mito do amor materno: Um amor conquistado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. 

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão aprova prazo para cartórios informarem sobre nascimentos sem nome do pai. 25 abr. 2025. Fonte: Agência Câmara de NotíciasDisponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/1153344-comissao-aprova-prazo-para-cartorios-informarem-sobre-nascimentos-sem-nome-do-pai/#:~:text=Comiss%C3%A3o%20aprova%20prazo%20para%20cart%C3%B3rios%20informarem%20sobre%20nascimentos%20sem%20nome%20do%20pai,-Proposta%20ainda%20ser%C3%A1&text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Previd%C3%AAncia%2C%20Assist%C3%AAncia,sem%20dados%20do%20pai%20biol%C3%B3gico>. Acesso em: 15 jun. 2025.

SOUZA, Beto. Dia dos Pais: 800 mil brasileiros foram registrados sem o nome do genitor desde 2019. CNN Brasil,  9 ago. 2024. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/dia-dos-pais-800-mil-brasileiros-foram-registrados-sem-o-nome-do-genitor-desde-2019/>. Acesso em: 15 jun. 2025.

Federici, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Editora Elefante, 2023.

Federici, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Editora Elefante, 2019.

FERREIRA, Afonso e LIMA, Juliana. Maioria no país, mulheres negras formam grupo menos beneficiado por avanços sociais, diz Pnud. G1, Brasília. Disponível em: 

<https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/05/28/maioria-no-pais-mulheres-negras-sao-o-grupo-menos-beneficiado-por-avancos-sociais-diz-pnud.ghtml>. Acesso em 14 de jun. de 2025.

Gilligan, Carol. In a different voice: Psychological theory and women’s development. Harvard university press, 1993.

Hirata, Helena; Kergoat, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de pesquisa, v. 37, p. 595-609, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/cCztcWVvvtWGDvFqRmdsBWQ/?lang=pt. Acesso em: 06 mar. 2024.

IBGE Educa. Quantidade de homens e mulheres. Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html#:~:text=A%20popula%C3%A7%C3%A3o%20brasileira%20%C3%A9%20composta,da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20residente%20no%20pa%C3%ADs>. Acesso em 14 jun. 2025.

Rich, Adrienne. Of woman born: Motherhood as experience and institution. WW Norton & Company, 2021.

THURLER, A. L. Outros horizontes para a paternidade brasileira no século XXI? Sociedade e Estado, v. 21, n. 3, p. 681–707, 1 dez. 2006. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69922006000300007>. 

Zanello, Valeska. Dispositivo materno e processos de subjetivação: desafios para a Psicologia. In: Zanello, Valeska; PORTO, Madge. Aborto e (não) desejo de maternidade (s): questões para a Psicologia. 2016.

Zanello, Valeska; PORTO, Madge. Aborto e (não) desejo de maternidade (s): questões para a Psicologia. 2016.