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Centro de Análise e Monitoramento de Políticas Públicas

A questão da política externa de Trump e o ataque ao Pix

Em 16 de setembro de 2025 por GT de Políticas Digitais.

Donald Trump Signs The Pledge” by Michael Vadon is licensed under CC BY-SA 2.0.

Henrique Cochi Bezerra, João Pedro Frealdo de Oliveira, Leonardo Ribeiro de Aragão e Miguel Said Vieira.

O sucesso do Pix no Brasil despertou reação do governo Trump, que vê no sistema uma ameaça às empresas estadunidenses. Sob acusações de “práticas desleais”, os EUA pressionam o país em uma disputa que envolve dados, soberania digital e poder econômico.

Em novembro de 2020, em plena pandemia de Covid-19, o Banco Central do Brasil lançou o Pix. Um sistema de pagamentos digitais sem necessidade de contato físico, gratuito, instantâneo e de fácil utilização. A ferramenta caiu rapidamente no gosto dos brasileiros e ganhou escala de forma impressionante. Em 2024, o Pix já havia se consolidado como a forma de pagamento mais utilizada no Brasil (ver gráfico 1), deixando para trás tanto o dinheiro quanto os cartões. O número de transações saltou de 9 bilhões em 2021 para 63 bilhões em 2024, movimentando 26 trilhões de reais desde sua criação. Nenhum outro país do mundo incorporou um sistema parecido tão rapidamente (THE ECONOMIST, 2025).

O êxito do modelo brasileiro, entretanto, chamou a atenção em Washington. O governo dos Estados Unidos iniciou uma investigação sobre as práticas comerciais do Brasil, levantando a suspeita de que o Pix estaria afetando a competitividade de companhias estadunidenses. Para a administração Trump, a expansão do sistema representa uma ameaça à atuação de seus players no mercado de pagamentos.

Gráfico 1

As críticas do governo dos Estados Unidos ao sistema de pagamentos brasileiro estão inseridas em um debate mais amplo que envolve big techs como Google, Meta e outras. Essas empresas mantêm suas próprias soluções de pagamento e enxergam o Pix como um potencial concorrente. Outro aspecto sensível para as gigantes de tecnologia é o tratamento de dados. Segundo a acusação, a legislação brasileira limitaria o acesso das companhias estadunidenses às informações pessoais dos usuários, afetando modelos de negócios baseados em publicidade personalizada (AMANTÉA, 2025).

O ataque, contudo, é infundado: considerar a LGPD uma barreira desleal é uma leitura no mínimo inadequada e no máximo mal intencionada, já que a lei é aplicada de forma igual a empresas nacionais e estrangeiras, e aplica-se também à operação do Pix. Ressalta-se ainda que a legislação representa um instrumento legítimo de proteção de direitos fundamentais e da soberania digital, em consonância com padrões internacionais. Nesse sentido, a investigação não teria como alvo real o Pix ou a LGPD, que não configuram obstáculo para a atuação de companhias americanas no Brasil, mas refletiria sobretudo interesses políticos dos EUA (AMANTÉA, 2025).

A questão, então, precisa ser considerada à luz da agenda política do governo estadunidense. Trump escancarou para quem governava quando de sua cerimônia de posse em janeiro de 2025. Cerimônia essa que contou com a participação ilustre de representantes das maiores empresas de tecnologia do mundo que contam com operações globais e sede nos EUA. Entre os nomes figuram Tim Cook (Apple), Mark Zuckerberg (META/Facebook), Jeff Bezos (Amazon) e Sam Altman (OpenAI).

A cúpula do governo Trump se comprometeu em buscar fortalecer tecnologias, sistemas e ecossistemas que têm suas operações base centralizadas nos EUA, em consonância com sua proposta de campanha que enfatizava a valorização de produtos americanos e um consequente protecionismo econômico – vide as altas taxas impostas pelo seu governo aos produtos importados e que tem sido razão de embate entre Trump e o executivo e o judiciário brasileiros. Essa abordagem pode ser atribuída a um reconhecimento – não necessariamente de Trump – da transformação que tem ocorrido no estágio atual do capitalismo. A acumulação de capital, etapa fundamental do capitalismo, adapta-se a uma nova realidade: dados são ativos financeiros que podem render dividendos maiores do que a mente humana poderia imaginar. Toda coleta de dados é uma coleta de lucros potenciais.

Nesse lugar, Altman exerce um papel fundamental: a OpenAI, na produção do ChatGPT e suas novas versões (atualmente baseadas no modelo GPT-5), alimenta-se de dados que vêm de todos os lugares, em sua maioria sem autorização – é significativo o caso da Folha de São Paulo, que acusa a empresa de competição desleal por usar seus conteúdos jornalísticos para treinamento desde 2022, e ainda fazê-lo burlando seu paywall, em elevada frequência (mais de 45 mil no mês de julho de 2025!). Trump parece dever favores a esses grupos, e isso tem motivado tanto a resistência a qualquer legislação de proteção de dados como uma política de fortalecimento da construção contínua de modelos de inteligência artificial que utilizarão esses dados. Além, é claro, de um forte lobby para que essas políticas também sejam enfraquecidas internacionalmente.

É a partir desse contexto que Trump atua no ataque à edificação da soberania digital no Brasil por meio do Pix e de outras tecnologias de pagamento: quanto mais usuários abandonarem o uso de cartões com bandeiras gerenciadas por empresas estadunidenses, menor será o lucro dessas empresas; quanto mais brasileiros utilizarem o Pix, menor será o sucesso do Apple e do Google Pay, e menor será nossa dependência por tecnologias americanas, e menor o acesso que suas empresas terão a dados para analisar o perfil do consumidor brasileiro – dados que valem ouro.

Dessa forma, o governo dos EUA atua em ataque à soberania nacional brasileira na medida em que o país, historicamente subserviente aos EUA e alinhado à sua ideologia, avança em construir não apenas tecnologias nacionais mas fortes tecnologias nacionais. Essa construção é fundamental para afastar o fantasma sempre presente da dependência da política e da economia estadunidenses.

Nessa esteira, vale reconhecer que a atuação dos estadunidenses sobre o território brasileiro é resultado também de um dispositivo autocrático de retaliação comercial, a Seção 301. A Seção 301 é uma ferramenta estabelecida pela Lei de Comércio e Tarifas de 1974, e é utilizada para investigar “barreiras comerciais desleais”, permitindo que o governo imponha retaliações comerciais contra países que prejudiquem o comércio estadunidense. 

Além da dubiedade inerente à ideia de “práticas desleais” nessa legislação – desleais pelos critérios de quem? –, sua intenção política torna-se clara quando consideramos que o Brasil já esteve perto de tornar-se alvo dela em função da prática de xerox nas universidades brasileiras. O governo americano incluiu o Brasil no relatório Special 301, que antecede a investigação da Seção 301, porque universitários faziam cópias impressas dos textos de leitura para disciplinas, deixados pelos professores nas gráficas dos campi.

O uso da Seção 301 no setor digital pelo governo de Trump não é algo inédito: entre 2019 e 2020, o United States Trade Representative (USTR), já havia iniciado investigações em 11 jurisdições, incluindo o Brasil, sobre a taxação de serviços digitais prestados por empresas americanas. Nessa ocasião, Robert Lighthizer, o representante de comércio dos Estados Unidos vigente, mandou uma carta para Paulo Guedes, evidenciando que, caso a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) fosse aprovada, a receita das “grandes empresas de tecnologia” seria afetada. 

No caso atual, reitera-se que a preocupação do USTR não é de garantir um espaço para o livre comércio e o suposto bem-estar econômico entre as nações parceiras, mas sim de perpetuar a dominação do empresariado americano sobre mercados estrangeiros. Desde Bretton Woods, o capital dos EUA utiliza instrumentos jurídicos de instituições de comércio imperialistas com o objetivo de expandir seu alcance em todo o mercado global. Não seria diferente na era dos dados, onde as empresas de tecnologia são os agentes com maior influência no governo americano, em especial na gestão de Trump.

O sucesso tecnológico da criação, implementação e uso do Pix no Brasil é visto como ameaça, mas denominado de “limitador da livre concorrência”, pois, segundo a administração Trump, empresas sem representação comercial no território brasileiro estariam fora do mercado. Quando o assunto é limitar a soberania política de outro país, qualquer motivação é construída para justificar ataques comerciais; entretanto, felizmente, o governo brasileiro não se mostrou intimidado e tomou a ação estadunidense como injustificável.

Diante desse cenário, o conceito de soberania digital se torna muito útil para guiar as ações brasileiras. Para Sergio Amadeu da Silveira e Jeff Xiong, soberania digital é a “capacidade de uma sociedade e um Estado de controlar e governar tecnologias essenciais para autodeterminação, proteção de direitos, inventividade e desenvolvimento.”  (SILVEIRA e XIONG, 2025). Isto é, um país digitalmente soberano deve ter controle dos serviços e infraestruturas digitais utilizados em seu território.

A fim de conseguir atingir tal soberania, deveriam ser articuladas políticas de fortalecimento das tecnologias brasileiras, especialmente as com grande potencial de inovação como o Pix, para evitar o aprisionamento tecnológico e auxiliar no desenvolvimento nacional. Fugir da dependência das empresas americanas requer um projeto político que encare o controle das atividades digitais como ponto estratégico para garantir soberania ao povo brasileiro. 

Referências 

AMANTÉA, R. (2025). O que explica o incômodo dos EUA com o avanço do Pix.  Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/economia/o-que-explica-o-incomodo-dos-eua-com-o-avanco-do-pix/. Acesso em: 19 ago. 2025.

THE ECONOMIST. (2025). Brazil’s government-run payments system has become dominant. Disponível em: <https://www.economist.com/the-americas/2025/04/03/brazils-government-run-payments-system-has-become-dominant>.

UNITED STATES TRADE REPRESENTATIVE. USTR announces initiation of Section 301 investigation into Brazil’s unfair trading practices. Washington, D.C., 21 jul. 2025. Disponível em: https://ustr.gov/about/policy-offices/press-office/press-releases/2025/july/ustr-announces-initiation-section-301-investigation-brazils-unfair-trading-practices Acesso em 02 de set. 2025

SILVEIRA, Sergio Amadeu; XIONG Jeff. Índice de soberania digital: o caso do Brasil. In: Liinc em Revista, v. 21, n. 01, e7451. Disponível em: https://revista.ibict.br/liinc/article/view/7451. Acesso em: 03 set. 2025.