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Centro de Análise e Monitoramento de Políticas Públicas

CLARK KENT: Política Externa e Opinião Pública, juntas

Em 25 de agosto de 2025 por GT de Política Externa.

Abraão Aguilera, Pamella Galvani Bulbov, Anna Carolline Fontes, Pedro Henrique Carmo Lima e Lara Machado Siqueira.

Fazendo uso de uma metáfora bem conhecida — principalmente pelos fãs de super-heróis — e de uma análise sobre a cobertura midiática da relação do Brasil com Israel e Palestina no contexto do conflito em Gaza, este texto explora a relação entre política externa e opinião pública, considerando o papel exercido pela imprensa nessa interação. Se Clark Kent encontra dificuldades em manter uma postura neutra ao relatar as informações que observa enquanto Superman, faz sentido supor que com a imprensa ocorre o mesmo.

INTRODUÇÃO

Há melhor exemplo de relação entre a política externa e a disseminação de sua realização do que um jornalista que é, ao mesmo tempo, um burocrata de “altíssimo” escalão quando remove seus óculos? Em rigor analítico, provavelmente sim; em capacidade explicativa, dificilmente. A investigação da interação entre os assuntos exteriores, a opinião pública e imprensa tem histórico recente dentro do campo da análise de política externa, o que torna o herói dos blockbusters, tomado aqui como metáfora, mais longevo e, por consequência, nosso guia para uma discussão mais facilitada e acessível.

É claro que a simplificação de temáticas como a que buscamos apresentar exige cautela, mas assistir Superman e não notar vestígios do conflito israelo-palestino metamorfizados nas nações da Borávia e de Jarhanpur é inevitável. Embora forneça poucos detalhes geopolíticos que cercam o conflito fictício, notam-se padrões emprestados de conflitos internacionais reais: a guerra por procuração de grandes potências por controle de regiões estratégicas; o uso da força militar para o avanço em fronteira estrangeira, ferindo o Direito Internacional; e, mais importante para este texto, a construção da narrativa do conflito para opinião pública, fazendo uso da imprensa e das mídias sociais para disseminá-la.

Tanto a formulação quanto a implementação da política externa estiveram, por muito tempo, distantes dos espaços de disputa hoje  estabelecidos. O campo de estudos da política externa que visa compreender esta arena decisória tem grandes contribuições em associá-la às perspectivas analíticas das políticas públicas. Antes disso, o próprio reconhecimento da existência de uma arena política na política exterior, e também de que suas ações sofrem pressões distintas, reforça seu caráter de política pública — apesar de suas nuances relacionadas à implementação em espaço estrangeiro e seu histórico de isolamento político nas chancelarias.

Prometendo diminuir os usos metafóricos da produção hollywoodiana, recorremos a ela, ao encerrar esta seção, para valorizar o seu potencial explicativo: o que Superman faz ao reportar-se a si mesmo de suas atividades no estrangeiro — quase sempre positivamente — associa-se ao conceito que denominamos enquadramento. O poder, neste sentido, não está na visão raio-X ou na supervelocidade, Clark Kent toma as rédeas da situação e elabora suas matérias jornalísticas para o Planeta Diário de modo que a imagem de sua persona oculta e super-poderosa pareça mais fiel aos preceitos morais em que acredita. De modo semelhante, nas proporções do mundo real, o enquadramento midiático condiz com a forma em que um fato é apresentado à sociedade.

O enquadramento, portanto, é um conceito central na discussão do papel da imprensa entre a política externa e a sua difusão na opinião pública, bem como suas reações. Trataremos disso a seguir, mas antes, é relevante aproximarmo-nos da análise de política externa como campo de estudos e sua contribuição para a ciência política. A seguir, passaremos brevemente pelas teorias que nos conduzem até a política externa situada no crivo da opinião pública e, consequentemente, tratar das discussões em torno do enquadramento midiático nos assuntos internacionais.

DESENVOLVIMENTO TEÓRICO

Partindo de uma construção conceitual abrangente, a formulação da política externa parte da interação entre fatores domésticos e globais, com negociações internacionais em dois níveis: o externo, no qual se firmam os acordos diplomáticos, e o interno, em que o apoio das forças domésticas é crucial (Putnam, 1988). É neste último em que a mídia e a opinião pública estão contidos, influenciando as decisões governamentais aos seus interesses (Baum; Potter, 2011). No Brasil, essa influência tem crescido, graças ao movimento de pluralização da política externa desde a redemocratização, que abriu espaço para novos atores além do Itamaraty, como o Congresso, certos grupos econômicos, sociedade civil e, de maior relevância a este texto, a imprensa (Baracho et al., 2023).

Nesse cenário, a imprensa desempenha um papel de mediação e de participante estratégico, moldando a percepção pública das questões internacionais e a agenda diplomática. Mídia e opinião pública são vistas como fatores ativos na formulação e implementação da política externa, influenciando os incentivos e riscos para os tomadores de decisão. O conceito de custos da esfera pública ilustra como a opinião coletiva afeta diretamente os líderes, reforçando a importância da aceitação doméstica para a legitimidade das decisões internacionais do governo. A imprensa é atuante na esfera pública a partir da elaboração do enquadramento das informações que obtém sobre a formulação das políticas públicas e, consequentemente, da área da política externa (Baum; Potter, 2011).

O conceito de enquadramento está dividido entre duas principais teorias: o modelo de cascatas descreve-o como um processo hierárquico, onde líderes políticos influenciam a mídia, que por sua vez molda a percepção pública, destacando a falta de neutralidade da mídia e a seleção seletiva das informações (Entman, 2004). Em contraste, o modelo mais horizontal propõe uma dinâmica em que os cidadãos atuam ativamente no fluxo do enquadramento, influenciando as elites por meio de retroalimentação e revelando uma interação contínua e circular na formação da opinião pública (Olmastroni, 2014).

CONFLITO ISRAEL X PALESTINA

Retomando historicamente, o conflito entre Israel e Palestina é um dos mais duradouros e complexos do cenário internacional. Suas raízes remontam ao final do século XIX, com o surgimento do movimento sionista e a resistência árabe-palestina ao projeto de colonização promovido por imigrantes judeus na região da Palestina histórica (Pappé, 2006). A situação se intensificou com a Declaração Balfour, de 1917, na qual o governo britânico expressou apoio a criação de um “lar nacional” para o povo judeu em uma Palestina majoritariamente árabe. 

Após o fim do mandato britânico, a ONU propôs em 1947 a partilha da Palestina em dois Estados, o que levou à guerra em 1948 e resultou na criação de Israel, em Al-Nakba e na reorganização das fronteiras regionais. A criação do Estado de Israel, em 1948, culminou na Nakba, o deslocamento forçado de centenas de milhares de palestinos, e marcou o início de uma série de confrontos regionais (Said, 2001).

As guerras de 1967 e 1973, os Acordos de Oslo de 1993 e as duas Intifadas (1987–1993 e 2000–2005) são marcos fundamentais para a compreensão do atual cenário de impasse político e humanitário (Finkelstein, 2012). Nos últimos anos, a expansão dos assentamentos israelenses na Cisjordânia, o bloqueio imposto à Faixa de Gaza e a normalização diplomática entre Israel e países árabes por meio dos chamados Acordos de Abraão (2020) agravaram ainda mais a marginalização do povo palestino (Rabinovich; Reinhart, 2021). Ademais, a influência internacional, especialmente dos Estados Unidos a favor de Israel, garantem a manutenção de sua política de expansão e extermínio sobre Gaza e Cisjordânia.

O Brasil, historicamente, tem defendido uma solução baseada na criação de dois Estados, em conformidade com as resoluções da ONU e o direito internacional. Essa posição, contudo, foi relativizada durante o governo Jair Bolsonaro (2019–2022), que adotou um alinhamento mais explícito com Israel, marcado por gestos simbólicos e declarações políticas (Spohr, 2020). A partir de 2023, com o retorno de Lula à presidência, há uma sinalização de retomada da postura tradicional de equilíbrio e defesa de uma solução pacífica negociada entre as partes (Pinheiro; Milani, 2023).

Neste novo patamar de violência, a postura adotada por Israel é novamente contrária aos acordos assumidos por meio dos Acordos de Oslo. A proposta de dois Estados foi abandonada pelo Estado de Israel sob o governo de Benjamin Netanyahu e, com o endosso do segundo governo de Donald Trump, Israel se coloca na posição de aspirar pelo restante do território palestino. Já tendo avançado sobre 75% do território de Gaza e com a ambição de tomar a sua totalidade, não está claro o futuro da população palestina deslocada e abrigada em acampamentos improvisados em Gaza. Mas, segundo a Classificação Integrada de Fases da Segurança Alimentar (IPC), da ONU, Gaza hoje configura seu pior cenário de fome, com mais de 40 mil crianças em alto risco de vida por desnutrição (IPC, 2025).

IMPRENSA BRASILEIRA E A AVALIAÇÃO DA PEB NESSE CONTEXTO

A partir da perspectiva teórica e da contextualização do conflito israelo-palestino, fazendo uso dos dados do Observatório de Política Externa na Imprensa (OPEI), vinculado ao projeto temático “O Brasil, as Américas e o Mundo” sediado no CEBRAP, investigaremos a avaliação dos grandes periódicos do Brasil em relação à PEB (Política Externa Brasileira) voltada a Israel e à Palestina. A base do OPEI tem observações que vão de 2014 até 2023 e analisam a postura dos principais jornais da mídia impressa (O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, O Globo e Valor Econômico) em diversas temáticas relacionadas à gestão da PEB, posicionando-a entre contrária, favorável e neutra.

A opção por este caminho para o desfecho do texto condiz com uma tentativa de associar o papel da imprensa no debate da política externa — através do enquadramento das informações difundidas à população — com a principal maneira com que ela exerce tal papel — nos textos editoriais e artigos de opinião desenvolvidos. A seguir, passamos pela descrição dos dados tabulados pelo OPEI e os posicionaremos à luz dos conceitos tratados no texto.

Ao observar a postura crítica que marca as relações bilaterais Brasil-Israel e Brasil-Palestina, nota-se o seguinte comportamento da imprensa: os periódicos mantêm, em geral, uma posição neutra em relação à gestão da PEB voltada à Palestina, mas, durante o mandato de Bolsonaro, essa tendência oscila para uma visão majoritariamente contrária, atingindo 52.9%. Em relação à PEB sobre Israel, na gestão de Temer o posicionamento é majoritariamente negativo, já Bolsonaro e Lula tiveram a PEB lida como neutra. Isso reforça a ideia de que o enquadramento midiático responde ao alinhamento ideológico da política externa e às expectativas do público leitor. A mídia age estrategicamente: expressa resistência simbólica a mudanças radicais (como o alinhamento automático com Israel) e busca manter sua legitimidade editorial (Baum; Potter, 2008). 

Nesse processo, sob uma ótica do enquadramento circular, o público também exerce influência. A opinião pública não apenas consome enquadramentos, mas os reinterpreta, afetando decisões futuras das elites políticas. Esse ciclo de retroalimentação transforma o enquadramento da política externa em uma disputa contínua, na qual o conteúdo dos jornais tanto molda quanto reflete a política do Estado brasileiro (Olmastroni, 2014). Já na perspectiva que vê o enquadramento como um processo hierárquico, a legitimidade editorial dos periódicos se associa aos conjuntos de valores que compõem sua orientação ideológica, cabendo ao público a absorção passiva dessas informações.

Retomando a metáfora: se o Superman, portador de um forte, quase ingênuo senso de justiça, enfrenta problemas em difundir as informações sem deixar rastros em seu enquadramento, não é trivial supor que a imprensa seja capaz. Dotada de valores, a posição de seus articulistas e de sua linha editorial expõe os indícios que guiam o enquadramento executado por cada jornal. O percurso dos fatos do cenário internacional — das organizações estatais de alto escalão e a imprensa até a opinião pública — se constrói em um contexto de disputas que os transformam. Essa constatação, portanto, é imprescindível para os estudos destas interações no campo da análise de política externa.

Referências

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